domingo, 28 de março de 2010

Crónica I



Era um fim de tarde ameno, daqueles em que já se avizinha a Primavera embora as noites ainda nos peçam um agasalho. Ela caminhava absorta num passo mais lento que o habitual, o que acontecia raramente pois normalmente traçava passos largos e numa cadência tão rápida, que quem a seu lado caminhasse tinha dificuldade em acompanhar. Era assim por natureza, irritavam-na as pessoas que se arrastavam num andar lento, como se carregassem consigo todas as amarguras do mundo, no entanto, conseguia por vezes relaxar a rapidez dos passos e aproveitar em jeito de passeio, para olhar as coisas e vê-las realmente, longe do olhar distraído com que habitualmente passava por elas.
Nestes passeios, havia geralmente uma qualquer paisagem ou cena do quotidiano que a faziam lamentar o facto de se esquecer sempre da máquina fotográfica, embora dissesse para si mesma todas as vezes, que para a próxima, não a iria esquecer.
Olhava intrigada para o fluxo de gente que afluía aos Centros Comerciais, famílias inteiras com ar feliz como se fossem para uma qualquer festa, só lhes faltava um cesto com a merenda para passarem lá o dia. Não conseguia ver-se naquele papel, odiava essas grandes superfícies instigadoras do consumismo e perguntava-se amiúde, onde estava a tal crise de que tanto se falava; mas quando por necessidade tinha de entrar num deles para comprar algo, reparava que as lojas permaneciam vazias e as pessoas limitavam-se a passear os olhos pelas montras, como se olhassem os quadros de um qualquer Museu, com a diferença que as crianças queriam tudo, pediam tudo e mais alguma coisa, faziam birras daquelas que lhe davam vontade de dar dois açoites no rabo, tanto das crianças, como dos pais que se limitavam a puxá-las pelo braço, mandando-as calar, sem grande convicção...afligia-a a falta de educação que imperava em grande parte das crianças com quem se cruzava, perguntava-se onde ficara o respeito e a moralidade que sempre lhe foram incutidos na infância e que ela sempre havia praticado; parece que actualmente a maioria dos pais se demitiu da sua função de educadores, deixando essa tarefa para as escolas e infantários onde os largam pela manhã como se fossem um fardo, e quando os recolhem ao fim do dia, deixam-nos entregues aos videojogos e aos computadores, as babysiters do Séc.XXI, para que possam assistir às suas telenovelas enquanto fazem o jantar.
Decidiu não pensar mais nesse assunto que lhe era áspero e destoava do vento agradável que fazia ondular os seus cabelos, parecia que a brisa ajudava a sacudir-lhe os pensamentos desprazíveis e continuou no seu passo compassado, a olhar os pássaros que já haviam regressado do seu retiro de inverno em países menos frios.
Pensou em sentar-se numa qualquer esplanada a olhar a azáfama das gentes que passam e a imaginar-lhes as vidas, como fizera muitas vezes, mas naquele sítio as esplanadas limitavam-se a um amontoado de cadeiras e mesas a ocupar os passeios, rentes aos automóveis que circulavam e não lhe apetecia uma dose de monóxido de carbono a acompanhar o sumo. Desistiu da ideia e continuou até à margem do rio onde esvoaçavam gaivotas e lembrou-se do velho ditado:"gaivotas em terra; tempestade no mar" e sorriu pensando que tal já não era certo hoje em dia, elas agora vêm para as cidades, sobretudo para aquelas onde há lixeiras, juntando-se à multidão de garçotes, milhafres e cegonhas que invariavelmente povoam esses lugares.
Olhar a água fez-lhe sede, entrou num café que havia no jardim ali próximo e comprou uma água para levar e beber sentada no muro que margeava o rio, ficando ali a demorar os olhos no correr das águas, sem pensar em nada, como fazia quando olhava o crepitar do fogo na lareira, até que uma voz masculina a acordou daquele torpor:
- Boa tarde, por acaso não tem lume?
- Não, não tenho; disse mentindo
- Ia jurar que estava a fumar há uns minutos...
- Estava a observar-me? Já lhe disse que não tenho lume, vá pedir a alguém no café.
- Parece que está triste...
- Desculpe lá, mas não tem nada com isso e agora, deixe-me sozinha que é como quero estar
- Não precisa aborrecer-se, só me perguntei o que faria aqui tão só...
Já estava a ficar sem paciência para aturar o abelhudo, veio-lhe à memória o final de um poema de Rosa Alice Branco, sobre o que fazia e respondeu:
- Eu digo-lhe o que faço: "soletro o dia em cada coisa que me olha quando me sinto a vê-la, é tudo; e não há desculpas para o que faço"
- ??????
O homem ficou com ar atarantado e finalmente virou costas e seguiu caminho, julgando-a louca decerto, mas a vantagem da loucura é mesmo essa, afastar os indesejáveis e permitir-nos estar e ser como queremos...

Ivone Lemos, 27.03.2010

Nenhum comentário: