segunda-feira, 29 de março de 2010

Crónica II

Maldizia a chuva que não parava de cair, ao afastar a cortina da janela enquanto olhava o cinzento do céu e as gotas que escorriam pelos vidros.
Na rua passavam as gentes com passos rápidos tentando equilibrar os guarda-chuvas contra o vento que mudava constantemente de direcção, para se refugiarem nos autocarros que as levariam ao destino.
Decidiu que não lhe apetecia enfrentar aquele vendaval só para ir à mercearia, aguardaria pelo estiar como calculava que acontecesse, e nessas coisas do tempo, raramente se enganava. Aproveitaria para continuar o bordado que havia começado há tempos para relaxar, tinham-na aconselhado nesse sentido, que era bom para a ansiedade, ou isso ou tricotar...no seu caso, parecia-lhe que o efeito era o oposto, parecia nunca mais acabar por mais pontos que desse e geralmente, quando o abandonava era com um gesto brusco que o atirava para dentro do cestinho cheio de linhas de bordar de várias cores.
Tinha sido a Lurdes lá do escritório que lhe sugerira a dita terapia, com a Salomé a dizer que a ela o que a relaxava era fazer bolos, o que devia acontecer amiúde, pelo ar corpulento que ostentava, facilmente se adivinhava que relaxava muitas vezes ao sabor da dita terapia...
A Joana contrapunha que lavar roupa é que era relaxante, que deviam experimentar, mas todas se perguntavam secretamente onde raio haviam de lavar a roupa, só se fosse de joelhos no chuveiro e tal ideia, não parecia de todo, relaxante. Estes apartamentos modernos não foram pensados para tarefas manuais, já vem tudo com as máquinas encastradas e os espaços da cozinha preenchidos, alguns até aspirador central têm.
Mas a Joana morava numa aldeia sem prédios, só havia casas com um r/ch e 1º andar no máximo mas todas tinham tanques em pequenos telheiros que serviam de estendal, e com a vantagem do grande terreno circundante, onde proliferavam as casas de arrumação e capoeiras, onde invariavelmente de madrugada ainda, um qualquer galo cantava esganiçado, queixava-se ela...
Dizia que gostava de morar num apartamento na cidade, o que todas nós contestávamos, enumerando as muitas desvantagens como: ouvir o autoclismo de um vizinho, as discussões de outros ou ainda as músicas em altos berros a horas impróprias e de gosto inequivocamente duvidoso, para além do facto dos elevadores produzirem um som grave e incomodativo, isto quando funcionavam, pois em muitos casos e em virtude de uma qualquer avaria ficavam tempos infindos sem serem reparados, umas vezes porque os condóminos não pagavam as quotas e a manutenção do elevador não era feita, nem as avarias reparadas.
Dizia-lhe a Salomé – pelos vistos já escaldada – que quando há muitas cabeças a opinar, raramente as conclusões são unânimes, e invariavelmente as (poucas) reuniões de condomínio que conseguiam juntar quorum, acabavam com uns a encolher os ombros, outros a lançar impropérios contra os “que têm o rei na barriga”, quando eles próprios é que parecem tê-lo e a direcção a dizer que não está para os aturar e a pedir a demissão...segundo ela, no seu prédio de 4 andares e 8 apartamentos, já construído com o vão necessário à instalação de elevador, embora não o tivesse, mora no segundo andar uma senhora que ficou numa cadeira de rodas há cerca de dois anos, nessa altura fez a proposta ao condomínio para a instalação de um elevador ou uma mera cadeira de escada que seria paga por ela, para que pudesse deslocar-se, mas volvido todo esse tempo nunca tal foi autorizado, para uns era porque a escada ficava inestética, para outros era porque o barulho ia incomodar toda a gente, à excepção dos do terceiro e quarto andares e para esses só faria sentido se instalassem um elevador para todo o prédio, a expensas do condomínio, o que gerava nova discussão em torno do mesmo assunto.
O que é facto é que a pobre senhora continuava dependente de terceiros para sair de casa e ninguém mostrava qualquer flexibilidade com vista à resolução do problema, continuando a olhar para os seus umbigos anafados e a Salomé a encolher os ombros, sem nada poder fazer por estar em minoria; vicissitudes da (dita) democracia...
Lembrara-se das colegas que no dia anterior tinham esboçado mais uma vez a vontade de se encontrarem para um almoço, que invariavelmente ficava adiado pois as vidas de cada um nem sempre se conjugavam, mas a Joana insistia que tinha de ser em sua casa, pois aí tinham espaço e a mãe mataria um frango para uma cabidela de que todos gostavam; mas ficavam-se por aí mesmo, pela intenção que sabiam ser genuína e com a certeza de que um dia haveria de calhar.
Dessa vez parecia que a terapia havia resultado, pois emergiu dos seus pensamentos e do bordado, quando deixou de ouvir o barulho da chuva e se acercou à janela e reparou que tinha passado quase uma hora, desde que retomara o bordado e quando reparou bem nele, verificou que tinha bordado muito para além do desenho, que não prestara qualquer atenção ao que fazia e agora tinha de desmanchar mais de metade do que havia feito.
Disse de si para si: “comigo nada funciona normalmente”; apesar de ter o condão de a haver distraído, o bordado em si não ganhava muito com a parceria, ela não conseguia concentrar-se em meros pontos, atrás de pontos e mais pontos, num desenho pré-elaborado que bastava seguir. Achava que era quase como os livros de colorir para as crianças, é evidente que a sua mente inquieta recordava lembranças, ou pensava em pormenores que queria alterar, fosse na sua vida, ou simplesmente em sua casa.
Pelo menos a “terapia” não lhe provocara pensamentos negativos, apenas pensamentos fúteis que não lhe pesavam. Afinal, se calhar, é este o objectivo e se assim é, está a funcionar...
Decidiu não desmanchar o bordado que extravasara o desenho, noutra altura continuaria a “relaxar” a partir dele...


Ivamarle, 29 de Março 2010

domingo, 28 de março de 2010

Crónica I



Era um fim de tarde ameno, daqueles em que já se avizinha a Primavera embora as noites ainda nos peçam um agasalho. Ela caminhava absorta num passo mais lento que o habitual, o que acontecia raramente pois normalmente traçava passos largos e numa cadência tão rápida, que quem a seu lado caminhasse tinha dificuldade em acompanhar. Era assim por natureza, irritavam-na as pessoas que se arrastavam num andar lento, como se carregassem consigo todas as amarguras do mundo, no entanto, conseguia por vezes relaxar a rapidez dos passos e aproveitar em jeito de passeio, para olhar as coisas e vê-las realmente, longe do olhar distraído com que habitualmente passava por elas.
Nestes passeios, havia geralmente uma qualquer paisagem ou cena do quotidiano que a faziam lamentar o facto de se esquecer sempre da máquina fotográfica, embora dissesse para si mesma todas as vezes, que para a próxima, não a iria esquecer.
Olhava intrigada para o fluxo de gente que afluía aos Centros Comerciais, famílias inteiras com ar feliz como se fossem para uma qualquer festa, só lhes faltava um cesto com a merenda para passarem lá o dia. Não conseguia ver-se naquele papel, odiava essas grandes superfícies instigadoras do consumismo e perguntava-se amiúde, onde estava a tal crise de que tanto se falava; mas quando por necessidade tinha de entrar num deles para comprar algo, reparava que as lojas permaneciam vazias e as pessoas limitavam-se a passear os olhos pelas montras, como se olhassem os quadros de um qualquer Museu, com a diferença que as crianças queriam tudo, pediam tudo e mais alguma coisa, faziam birras daquelas que lhe davam vontade de dar dois açoites no rabo, tanto das crianças, como dos pais que se limitavam a puxá-las pelo braço, mandando-as calar, sem grande convicção...afligia-a a falta de educação que imperava em grande parte das crianças com quem se cruzava, perguntava-se onde ficara o respeito e a moralidade que sempre lhe foram incutidos na infância e que ela sempre havia praticado; parece que actualmente a maioria dos pais se demitiu da sua função de educadores, deixando essa tarefa para as escolas e infantários onde os largam pela manhã como se fossem um fardo, e quando os recolhem ao fim do dia, deixam-nos entregues aos videojogos e aos computadores, as babysiters do Séc.XXI, para que possam assistir às suas telenovelas enquanto fazem o jantar.
Decidiu não pensar mais nesse assunto que lhe era áspero e destoava do vento agradável que fazia ondular os seus cabelos, parecia que a brisa ajudava a sacudir-lhe os pensamentos desprazíveis e continuou no seu passo compassado, a olhar os pássaros que já haviam regressado do seu retiro de inverno em países menos frios.
Pensou em sentar-se numa qualquer esplanada a olhar a azáfama das gentes que passam e a imaginar-lhes as vidas, como fizera muitas vezes, mas naquele sítio as esplanadas limitavam-se a um amontoado de cadeiras e mesas a ocupar os passeios, rentes aos automóveis que circulavam e não lhe apetecia uma dose de monóxido de carbono a acompanhar o sumo. Desistiu da ideia e continuou até à margem do rio onde esvoaçavam gaivotas e lembrou-se do velho ditado:"gaivotas em terra; tempestade no mar" e sorriu pensando que tal já não era certo hoje em dia, elas agora vêm para as cidades, sobretudo para aquelas onde há lixeiras, juntando-se à multidão de garçotes, milhafres e cegonhas que invariavelmente povoam esses lugares.
Olhar a água fez-lhe sede, entrou num café que havia no jardim ali próximo e comprou uma água para levar e beber sentada no muro que margeava o rio, ficando ali a demorar os olhos no correr das águas, sem pensar em nada, como fazia quando olhava o crepitar do fogo na lareira, até que uma voz masculina a acordou daquele torpor:
- Boa tarde, por acaso não tem lume?
- Não, não tenho; disse mentindo
- Ia jurar que estava a fumar há uns minutos...
- Estava a observar-me? Já lhe disse que não tenho lume, vá pedir a alguém no café.
- Parece que está triste...
- Desculpe lá, mas não tem nada com isso e agora, deixe-me sozinha que é como quero estar
- Não precisa aborrecer-se, só me perguntei o que faria aqui tão só...
Já estava a ficar sem paciência para aturar o abelhudo, veio-lhe à memória o final de um poema de Rosa Alice Branco, sobre o que fazia e respondeu:
- Eu digo-lhe o que faço: "soletro o dia em cada coisa que me olha quando me sinto a vê-la, é tudo; e não há desculpas para o que faço"
- ??????
O homem ficou com ar atarantado e finalmente virou costas e seguiu caminho, julgando-a louca decerto, mas a vantagem da loucura é mesmo essa, afastar os indesejáveis e permitir-nos estar e ser como queremos...

Ivone Lemos, 27.03.2010